terça-feira, 14 de outubro de 2014

Resenha do livro: A Língua de Eulália

Resenha do livro: A Língua de Eulália

1. Identificação da obra:

BibliografiaBAGNO, Marcos. A Língua de Eulália: novela sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2006.

2. Apresentação da obra:
            A obra narra a história de três estudantes que vão passar as férias em uma chácara, no interior de São Paulo na casa de uma professora aposentada, que é tia de uma delas, onde se deparam com a língua de Eulália, uma variação da língua padrão, utilizada pela empregada da casa. A partir daí, a curiosidade as leva a reuniões que evoluem para aulas, onde são abordados temas como a variedade sociolinguística que desvenda o mito da unidade linguística do Brasil, as diferenças e semelhanças linguísticas entre o português padrão e o português não padrão, entre a língua falada e a língua escrita e o preconceito sofrido por quem fala “diferente”. Marcos Bagno enfatiza que falar “diferente” não quer dizer que está se falando errado, e que este “erro” encontra explicação lógica, científica, linguística, histórica e psicológica, temas abordados com muita simplicidade numa narrativa com linguagem descomplicada e de fácil entendimento aos leitores.

3. Descrição da estrutura:
O livro de 215 páginas apresenta-se dividido em 21 capítulos, contendo subtítulos, não numeradas e no final um capítulo intitulado “Mais duas palavrinha e sugestões de leitura” , descrito pelo autor. Com o foco narrativo em terceira pessoa, aborda os temas em forma de novela sociolinguística, onde é narrada uma história abordando questões relativas à relação entre a língua falada e escrita no contexto da sociedade em que vivemos.

4. Descrição do conteúdo:
Vera tem 21 anos, é estudante de Letras. Sílvia, da mesma idade, estuda psicologia. Emília, 19, está no primeiro ano de Pedagogia. Elas são professoras do curso primário no mesmo colégio de São Paulo. As três vão passar as férias de julho em Atibaia, na chácara de Irene, que é professora de Língua Portuguesa e linguística aposentada e tia de Vera.  Na casa, conhecem Eulália que é mais que empregada de Irene, devido aos longos anos de convivência, já se tornaram amigas. Eulália foi alfabetizada por Irene, já adulta, com aulas á noite. A Eulália foi trazendo algumas conhecidas, estas foram trazendo mais gente, todas adultas, a maioria mulheres que trabalhavam nas casas do bairro onde ela mora, assim Irene montou na chácara um curso de alfabetização para adultos.
Ao observarem como Eulália pronuncia as palavras, como por exemplo, “os probrema”, “os fósfro”, “môio ingrês”, acham engraçado e julgam que ela fala tudo errado. Irene explica que a fala de Eulália não é errada: é diferente. É o português de uma classe social diferente da qual elas pertencem. É errado dentro das regras da gramática que se aplicam ao português padrão. Mas na variedade não padrão falada pela Eulália essas regras não funcionam.
A curiosidade sobre o assunto aumenta e Irene baseada em pesquisas, pois está escrevendo um livro sobre variação linguística, começa a relatar às meninas os vários fenômenos linguísticos e sua lógica de funcionamento.
Primeiramente começa explicando que toda a língua possui variações, fonéticas (som), sintáticas (organização das frases), lexicais (vocabulário), semânticas (relativa ao sentido das palavras), das diferenças do uso da língua entre outros tipos de variedades: como de gênero, socioeconômicas, etárias, de nível de instrução, urbanas, rurais etc. Porque toda língua, além de variar geograficamente, no espaço, também muda com o tempo. A língua que falamos hoje no Brasil é diferente da que era falada aqui mesmo no início da colonização, e também é diferente da língua que será falada aqui mesmo dentro de trezentos ou quatrocentos anos.

Segue desmistificando o mito da unidade linguística do Brasil, onde existem mais de duzentas línguas ainda faladas em diversos pontos do país pelos sobreviventes das antigas nações indígenas. Além disso, muitas comunidades de imigrantes estrangeiros mantêm viva a língua de seus ancestrais: coreanos, japoneses, alemães, italianos etc. Portanto, não se fala uma só língua portuguesa. Fala-se certo número de variedades de português, das quais algumas chegaram ao posto de norma–padrão por motivos que não são de ordem linguística, mas histórica, econômica, social e cultural.  Por não existir esta unidade linguística é que se criou o chamado “português-não padrão”.
Irene adota a nomenclatura de (PP) para o português padrão e (PNP) para o português-não padrão.
Existe, portanto um português-padrão (PP) que é a forma oficial, falado pelas pessoas que detêm o poder e estão nas classes sociais mais privilegiadas, usada na literatura, nos meios de comunicação, nas leis e decretos do governo, ensinadas nas escolas, explicada nas gramáticas, definida nos dicionários. E o português-não padrão (PNP) é o falado pela maioria pobre e pelos analfabetos, e consequentemente a língua das crianças pobres e carentes que frequentam as escolas públicas. Por ser utilizado por pessoas de classes sociais desprestigiadas, marginalizadas, oprimidas pela terrível injustiça social ele é considerado “feio”, “deficiente”, “pobre”, “errado”, “rude”, “tosco”. Esses preconceitos fazem com que a criança que chega à escola falando (PNP) seja considerada uma “deficiente” linguística, quando na verdade     ela simplesmente fala uma língua diferente daquela que é ensinada na escola. Irene reitera que nosso sistema educacional valoriza aquelas crianças que já chegam à escola trazendo na sua bagagem linguística o (PP) e expulsa as que não o trazem. Isso é uma grande injustiça, porque é exatamente esse português-padrão que deveria ser ensinado na escola, porque ele permite que o aluno originário das classes sociais desfavorecidas se apodere de um recurso fundamental em sua luta contra as desigualdades sociais, tão profundas em nosso país.
            As aulas continuam empolgadas entre descobertas, questionamentos e aprendizagens se transformando num pequeno curso intensivo de português não padrão.
            Irene fala do seu livro, onde vai abordar as diferenças linguísticas e tentar explicar o porquê delas, e lembra que as semelhanças entre as variedades do português do Brasil são muito maiores do que as diferenças e que essa é uma verdade que devemos sempre salientar, na qual devemos nos apoiar se quisermos provocar uma mudança de atitude, se nos pusermos a combater o preconceito linguístico, que se apoia nas diferenças.
            Irene demonstra que o (PNP), é coerente, segue as tendências naturais do português e tem uma lógica histórica e concluem que o problema dos falantes do (PNP), não é linguístico, é social. E mais uma vez Irene enfatiza que não se quer eliminar o português padrão das escolas e passar a ensinar o (PNP). Mas o conhecimento dessas regras serve para que fiquemos mais atentas às diferenças que existem entre as duas variedades... Diferenças que quase sempre, infelizmente, são logo considerados “erros” por quem não consegue compreender a lógica que existe nelas.
            No decorrer das aulas, as “alunas” percebem que a prática tradicional de ensino da língua portuguesa no Brasil deixa transparecer, além da crença no mito da “unidade da língua portuguesa”, a ideologia da necessidade de “dar” ao aluno aquilo que ele “não tem”, ou seja, uma “língua”. Essa pedagogia paternalista e autoritária faz tábua rasa da bagagem linguística da criança, e trata-a como se seu primeiro dia de aula fosse também seu primeiro dia de vida. Trata-se de querer “ensinar” (de fora para dentro) ao invés de “educar” (de dentro para fora).
Irene prossegue analisando a escola, nossas gramáticas normativas, nossos livros didáticos, nossa psicologia educacional, que estão imbuídos da crença de que um aprendiz nada tem a mostrar, e que, ao contrário, é “deficiente”, “carente”, “inepto”, assumindo assim sem disfarce a tarefa de “ensinar”, de incutir uma língua diferente, tida como intrinsecamente “boa” e “perfeita”. O fracasso dessa atitude fica bem claro no número impressionante de alunos que abandonam a escola. Isso vem demonstrando que já é hora de tentar educar, de destravar os alunos das classes desfavorecidas, para que possam “pôr para fora” suas experiências, sua língua, e passem a falar por si mesmos.
Irene descreve o quanto é importante que nós, educadores, tenhamos em mente que o português não padrão é diferente do português-padrão, mas igualmente lógico bem estruturado e que ele companha as tendências naturais da língua, quando não refreada pela educação formal. O (PNP) não é “pobre”, “carente” nem “errado”. Pobres e carentes são, sim, aqueles que o falam, e errada é a situação de injustiça social em que vivem.
Vera, Silvia Emília e Irene concordam que além de precisarmos modificar nossa maneira de encarar o (PNP) libertando-nos de todos os preconceitos que atrapalham a nossa visão dos fenômenos da língua, também precisamos transformar nossa maneira de trabalhar com a própria norma padrão e tentar descobrir novas trilhas para a nossa prática pedagógica.
Irene segue na questão que temos que ensinar nossos alunos a escrever de acordo com a ortografia oficial, mas não podemos fazer isso tentando criar uma língua “artificial” e reprovando as pronúncias que são um resultado natural das forças internas que governam o idioma, inclusive nas suas variedades cultas. Cita como exemplo que o aluno pode falar bonito ou bunito, menino ou minino, mas que só pode escrever bonito e menino, por que é preciso uma ortografia única para toda a língua, para que todos possam ler e compreender o que está escrito.
Além disso, é preciso também que, dentro da escola, haja espaço para o máximo possível de variedades linguísticas: urbanas, rurais, cultas, não cultas faladas, escritas, antigas, modernas... Para que as pessoas se conscientizem de que a língua não é um bloco compacto, homogêneo, parado no tempo e no espaço, mas sim um universo complexo, rico, dinâmico e heterogêneo...
Em suma, Irene defende o ensino da norma padrão, mas de um ensino crítico da norma-padrão, de um ensino que mostre que essa norma-padrão não tem, linguisticamente, nada de mais bonito, de mais lógico, de mais coerente que as variedades usadas pelos falantes menos cultos ou analfabetos. E, ao mesmo tempo, propõe a valorização dos usos linguísticos não padrão, sobretudo porque a língua que uma pessoa fala, que ela aprendeu com sua família e com sua comunidade, a língua que ela usa para falar consigo mesma, para pensar, para expressar seus sentimentos, suas crenças e emoções, faz parte da identidade dessa pessoa, é como se a língua fosse a pessoa mesma...
Irene conclui as aulas relembrando que traços característicos do PNP (considerados “erros”) se encontram em outras línguas, o que mostra que eles não são uma prova da “ignorância” ou da “deficiência mental” do nosso povo; que muitos aspectos considerados “errados” no PNP (e no PP do Brasil) são na verdade arcaísmos, vestígios da língua portuguesa falada há muitos séculos atrás; e conclui que a língua escrita não deve ser usada como camisa-de-força para submeter e aprisionar a língua falada; a escrita é tentativa de representação da língua falada e nasceu centenas de milhares de anos depois de o homem ter começado a falar.

Na hora da despedida o afeto é tão grande que parece que as três estão de partida para algum lugar muito distante e remoto, e não para São Paulo, que fica a pouco mais de uma hora dali. Irene conta que recebeu a proposta de uma editora para publicar o seu livro sobre o português não padrão e surpreende as meninas ao resolver dedicar o livro a elas, que tiveram tanta paciência em servir de “cobaia” para os seus testes científicos. Também quer fazer uma surpresa para a Eulália dando ao livro o título de A Língua de Eulália... Afinal, foi observando a variedade linguística dela que me veio à ideia de estudar o assunto...

Paula Barbosa
“Acadêmica do Curso de Pedagogia- EAD da Universidade Federal de Pelotas (UFPel)”.




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