Resenha do livro: A Língua de Eulália
1. Identificação da obra:
BibliografiaBAGNO, Marcos. A Língua de Eulália: novela
sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2006.
2.
Apresentação da obra:
A obra narra a história de três estudantes que vão passar as férias em uma chácara,
no interior de São Paulo na casa de uma professora aposentada, que é tia de uma
delas, onde se deparam com a língua de Eulália, uma variação da língua padrão,
utilizada pela empregada da casa. A partir daí, a curiosidade as leva a
reuniões que evoluem para aulas, onde são abordados temas como a variedade
sociolinguística que desvenda o mito da unidade linguística do Brasil, as
diferenças e semelhanças linguísticas entre o português padrão e o português
não padrão, entre a língua falada e a língua escrita e o preconceito sofrido
por quem fala “diferente”. Marcos Bagno enfatiza que falar “diferente” não quer
dizer que está se falando errado, e que este “erro” encontra explicação lógica,
científica, linguística, histórica e psicológica, temas abordados com muita
simplicidade numa narrativa com linguagem descomplicada e de fácil entendimento
aos leitores.
3. Descrição da estrutura:
O livro de 215
páginas apresenta-se dividido em 21 capítulos, contendo subtítulos, não
numeradas e no final um capítulo intitulado “Mais duas palavrinha e sugestões
de leitura” , descrito pelo autor. Com o foco narrativo em terceira pessoa,
aborda os temas em forma de novela sociolinguística, onde é narrada uma
história abordando questões relativas à relação entre a língua falada e escrita
no contexto da sociedade em que vivemos.
4.
Descrição do conteúdo:
Vera tem 21 anos, é
estudante de Letras. Sílvia, da mesma idade, estuda psicologia. Emília, 19,
está no primeiro ano de Pedagogia. Elas são professoras do curso primário no
mesmo colégio de São Paulo. As três vão passar as férias de julho em Atibaia,
na chácara de Irene, que é professora de Língua Portuguesa e linguística
aposentada e tia de Vera. Na casa, conhecem Eulália que é mais que
empregada de Irene, devido aos longos anos de convivência, já se tornaram
amigas. Eulália foi alfabetizada por Irene, já adulta, com aulas á noite.
A Eulália foi trazendo algumas conhecidas, estas foram trazendo mais gente,
todas adultas, a maioria mulheres que trabalhavam nas casas do bairro onde ela
mora, assim Irene montou na chácara um curso de alfabetização para adultos.
Ao observarem como
Eulália pronuncia as palavras, como por exemplo, “os probrema”, “os fósfro”,
“môio ingrês”, acham engraçado e julgam que ela fala tudo errado. Irene explica
que a fala de Eulália não é errada: é diferente. É o português de uma classe
social diferente da qual elas pertencem. É errado dentro das regras da
gramática que se aplicam ao português padrão. Mas na variedade não padrão
falada pela Eulália essas regras não funcionam.
A curiosidade sobre o
assunto aumenta e Irene baseada em pesquisas, pois está escrevendo um livro
sobre variação linguística, começa a relatar às meninas os vários fenômenos
linguísticos e sua lógica de funcionamento.
Primeiramente começa
explicando que toda a língua possui variações, fonéticas (som), sintáticas
(organização das frases), lexicais (vocabulário), semânticas (relativa ao
sentido das palavras), das diferenças do uso da língua entre outros tipos de
variedades: como de gênero, socioeconômicas, etárias, de nível de instrução,
urbanas, rurais etc. Porque toda língua, além de variar geograficamente, no
espaço, também muda com o tempo. A língua que falamos hoje no Brasil é
diferente da que era falada aqui mesmo no início da colonização, e também é
diferente da língua que será falada aqui mesmo dentro de trezentos ou
quatrocentos anos.
Segue desmistificando
o mito da unidade linguística do Brasil, onde existem mais de duzentas línguas
ainda faladas em diversos pontos do país pelos sobreviventes das antigas nações
indígenas. Além disso, muitas comunidades de imigrantes estrangeiros mantêm
viva a língua de seus ancestrais: coreanos, japoneses, alemães, italianos etc.
Portanto, não se fala uma só língua portuguesa. Fala-se certo número de
variedades de português, das quais algumas chegaram ao posto de norma–padrão
por motivos que não são de ordem linguística, mas histórica, econômica, social
e cultural. Por não existir esta unidade
linguística é que se criou o chamado “português-não padrão”.
Irene adota a
nomenclatura de (PP) para o português padrão e (PNP) para o português-não
padrão.
Existe, portanto um
português-padrão (PP) que é a forma oficial, falado pelas pessoas que detêm o
poder e estão nas classes sociais mais privilegiadas, usada na literatura, nos
meios de comunicação, nas leis e decretos do governo, ensinadas nas escolas,
explicada nas gramáticas, definida nos dicionários. E o português-não padrão
(PNP) é o falado pela maioria pobre e pelos analfabetos, e consequentemente a
língua das crianças pobres e carentes que frequentam as escolas públicas. Por
ser utilizado por pessoas de classes sociais desprestigiadas, marginalizadas,
oprimidas pela terrível injustiça social ele é considerado “feio”,
“deficiente”, “pobre”, “errado”, “rude”, “tosco”. Esses preconceitos fazem com
que a criança que chega à escola falando (PNP) seja considerada uma
“deficiente” linguística, quando na verdade
ela simplesmente fala uma língua diferente daquela que é ensinada na
escola. Irene
reitera que nosso sistema educacional valoriza aquelas crianças que já chegam à
escola trazendo na sua bagagem linguística o (PP) e expulsa as que não o
trazem. Isso é uma grande injustiça, porque é exatamente esse português-padrão
que deveria ser ensinado na escola, porque ele permite que o aluno originário
das classes sociais desfavorecidas se apodere de um recurso fundamental em sua
luta contra as desigualdades sociais, tão profundas em nosso país.
As
aulas continuam empolgadas entre descobertas, questionamentos e aprendizagens
se transformando num pequeno curso intensivo de português não padrão.
Irene
fala do seu livro, onde vai abordar as diferenças linguísticas e tentar
explicar o porquê delas, e lembra que as semelhanças entre as variedades do
português do Brasil são muito maiores do que as diferenças e que essa é uma
verdade que devemos sempre salientar, na qual devemos nos apoiar se quisermos
provocar uma mudança de atitude, se nos pusermos a combater o preconceito
linguístico, que se apoia nas diferenças.
Irene
demonstra que o (PNP), é coerente, segue as tendências naturais do português e
tem uma lógica histórica e concluem que o problema dos falantes do (PNP), não é
linguístico, é social. E mais uma vez Irene enfatiza que não se quer eliminar o
português padrão das escolas e passar a ensinar o (PNP). Mas o conhecimento
dessas regras serve para que fiquemos mais atentas às diferenças que existem
entre as duas variedades... Diferenças que quase sempre, infelizmente, são logo
considerados “erros” por quem não consegue compreender a lógica que existe
nelas.
No
decorrer das aulas, as “alunas” percebem que a prática tradicional de ensino da
língua portuguesa no Brasil deixa transparecer, além da crença no mito da
“unidade da língua portuguesa”, a ideologia da necessidade de “dar” ao aluno
aquilo que ele “não tem”, ou seja, uma “língua”. Essa pedagogia paternalista e
autoritária faz tábua rasa da bagagem linguística da criança, e trata-a como se
seu primeiro dia de aula fosse também seu primeiro dia de vida. Trata-se de
querer “ensinar” (de fora para dentro) ao invés de “educar” (de dentro para
fora).
Irene prossegue
analisando a escola, nossas gramáticas normativas, nossos livros didáticos, nossa
psicologia educacional, que estão imbuídos da crença de que um aprendiz nada
tem a mostrar, e que, ao contrário, é “deficiente”, “carente”, “inepto”,
assumindo assim sem disfarce a tarefa de “ensinar”, de incutir uma língua
diferente, tida como intrinsecamente “boa” e “perfeita”. O fracasso dessa
atitude fica bem claro no número impressionante de alunos que abandonam a
escola. Isso vem demonstrando que já é hora de tentar educar, de destravar os
alunos das classes desfavorecidas, para que possam “pôr para fora” suas
experiências, sua língua, e passem a falar por si mesmos.
Irene descreve o
quanto é importante que nós, educadores, tenhamos em mente que o português não
padrão é diferente do português-padrão, mas igualmente lógico bem estruturado e
que ele companha as tendências naturais da língua, quando não refreada pela
educação formal. O (PNP) não é “pobre”, “carente” nem “errado”. Pobres e
carentes são, sim, aqueles que o falam, e errada é a situação de injustiça
social em que vivem.
Vera, Silvia Emília e
Irene concordam que além de precisarmos modificar nossa maneira de encarar o
(PNP) libertando-nos de todos os preconceitos que atrapalham a nossa visão dos
fenômenos da língua, também precisamos transformar nossa maneira de trabalhar
com a própria norma padrão e tentar descobrir novas trilhas para a nossa
prática pedagógica.
Irene segue na
questão que temos que ensinar nossos alunos a escrever de acordo com a
ortografia oficial, mas não podemos fazer isso tentando criar uma língua
“artificial” e reprovando as pronúncias que são um resultado natural das forças
internas que governam o idioma, inclusive nas suas variedades cultas. Cita como
exemplo que o aluno pode falar bonito ou bunito, menino ou minino, mas que só
pode escrever bonito e menino, por que é preciso uma ortografia única para toda
a língua, para que todos possam ler e compreender o que está escrito.
Além disso, é preciso
também que, dentro da escola, haja espaço para o máximo possível de variedades
linguísticas: urbanas, rurais, cultas, não cultas faladas, escritas, antigas,
modernas... Para que as pessoas se conscientizem de que a língua não é um bloco
compacto, homogêneo, parado no tempo e no espaço, mas sim um universo complexo,
rico, dinâmico e heterogêneo...
Em suma, Irene
defende o ensino da norma padrão, mas de um ensino crítico da norma-padrão, de
um ensino que mostre que essa norma-padrão não tem, linguisticamente, nada de
mais bonito, de mais lógico, de mais coerente que as variedades usadas pelos
falantes menos cultos ou analfabetos. E, ao mesmo tempo, propõe a valorização
dos usos linguísticos não padrão, sobretudo porque a língua que uma pessoa fala,
que ela aprendeu com sua família e com sua comunidade, a língua que ela usa
para falar consigo mesma, para pensar, para expressar seus sentimentos, suas
crenças e emoções, faz parte da identidade dessa pessoa, é como se a língua
fosse a pessoa mesma...
Irene conclui as
aulas relembrando que traços característicos do PNP (considerados “erros”) se
encontram em outras línguas, o que mostra que eles não são uma prova da
“ignorância” ou da “deficiência mental” do nosso povo; que muitos aspectos
considerados “errados” no PNP (e no PP do Brasil) são na verdade arcaísmos,
vestígios da língua portuguesa falada há muitos séculos atrás; e conclui que a
língua escrita não deve ser usada como camisa-de-força para submeter e
aprisionar a língua falada; a escrita é tentativa de representação da língua
falada e nasceu centenas de milhares de anos depois de o homem ter começado a
falar.
Na hora da despedida
o afeto é tão grande que parece que as três estão de partida para algum lugar
muito distante e remoto, e não para São Paulo, que fica a pouco mais de uma
hora dali. Irene conta que recebeu a proposta de uma editora para publicar o
seu livro sobre o português não padrão e surpreende as meninas ao resolver
dedicar o livro a elas, que tiveram tanta paciência em servir de “cobaia” para
os seus testes científicos. Também quer fazer uma surpresa para a Eulália dando
ao livro o título de A Língua de Eulália... Afinal, foi observando a variedade
linguística dela que me veio à ideia de estudar o assunto...
Paula Barbosa
“Acadêmica do
Curso de Pedagogia- EAD da Universidade Federal de Pelotas (UFPel)”.
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